sexta-feira, 24 de abril de 2015

Do amor em fuga e outras drogas* - [SPOILERS]

"A morte de Ofélia", de John Everett Millais**
(ou a pobre Aurora no final planejado pelo seu marido e a amante)
Neste módulo intitulado O amor em fuga, assistimos a quatro filmes: Aurora, Janela indiscreta, Todas as mulheres do mundo e O último metrô. Segundo os autores do livro A história da filosofia em 40 filmes, este módulo dedicado ao amor seria a continuação do anterior  sobre existencialismo, pois o que ainda daria algum sentido a vida do homem existencialista, seriam o amor e/ou a morte. 

Nesses filmes o amor é o relacionamento humano conjugal, passional e em fuga (no final do post vou tentar explicar o que entendi por amor em fuga) e acontece entre o ser amante e o ser amado. 

Para meu estarrecimento absoluto, logo no primeiro filme, Aurora, o clima de desamor é funesto, pois conta a história de um marido que planeja matar a esposa para poder viver com sua amante na cidade. A cena mais comovente é a em que Aurora percebe a tentativa de seu marido assassiná-la e implora pela vida (eu chorei horrores). Porém, o destino de Aurora se transforma ao longo do filme quase que magicamente, ela vai da condição de alvo da brutalidade do sórdido marido, para a de mulher muito amada e desejada pelo mesmo esposo (o.O ?! - essas reveses entre amor e ódio, vai entender). Mas o mais impressionante, para mim pelo menos, é saber que: o que de fato muda o terrível destino de Aurora, não são as atitudes da personagem, mas sim a percepção do marido sobre a esposa.  Segundo jornalista Sílvia Amélia "todo amor é lembrança", depois que ele desiste do plano, sugerido por sua amante, de afogá-la (é minha gente A-F-O-G-Á-L-A !!!) e, contra toda expectativa do final trágico, o personagem do marido redescobre o amor por Aurora pelas lembranças, o casal vai para a cidade e acaba fazendo um passeio recheado de locais por onde viveram momentos românticos e também surgem novas aventuras. Se belo está nos olhos de quem vê, então, o amor estaria na percepção de quem ama? Bastou o marido lançar um segundo olhar para redescobrir em Aurora sua parceira ideal novamente? Para além do drama conjugal, gostei do filme porque mostra como era a relação marido-mulher no começo do século XX, a esposa quando indesejada era um fardo social e à mulher só restava rezar por dias melhores no casamento.

Em Todas as mulheres do mundo, Paulo é o típico cafajeste cético no amor monogâmico, que acaba se apaixonando por Maria Alice e passa a acreditar na vida conjugal burguesa e feliz. Tudo acaba bem, é a história de mais um canalha convertido a pai de família. Os pontos mais interessantes no filme são os questionamentos do próprio Paulo com seus amigos acerca do amor e dos relacionamentos conjugais, segundo ele não seria possível amar a uma só mulher em meio a todas as mulheres do mundo, a variedade, as qualidades e defeitos em cada, tornaria impossível escolher uma única. Mas também me impressiona a ambiguidade da relação de Paulo com as mulheres, marcado pelo desejo e ao mesmo tempo pelo desprezo, deitado na praia cercado de várias garotas conversando com ele, Paulo pensa “que mulherzinhas chatas”. O personagem retrata um tipo masculino bem comum, que tem dúvidas sobre qual a melhor vida amorosa e quais critérios usar para escolher a companheira ideal. No final, ele diz a Maria Alice “você não é a melhor mulher do mundo, talvez não seja a melhor mesmo, mas é você que eu amo e por isso eu te escolhi” ou algo parecido com isso. Achei a Maria Alice uma personagem que retrata como a maioria das mulheres é, feliz por ter o cafa amado redimido ao seu lado. Nas discussões do confraria, apesar todas as opiniões contra, esse filme mostra que o modelo burguês de relacionamento “funciona e dá certo”, nas palavras do próprio Paulo.

Em Janela indiscreta o relacionamento amoroso divide a trama principal com uma suspeita de assassinato. É um suspense e, justamente por isso, estranhei que um filme de Hitchcock tenha sido escolhido para um módulo que fala de amor, mas no fim acho que a razão é a mesma do Aurora, pois se trata de uma história em que o olhar do ser amante muda sobre o ser amado. Jeff é um fotojornalista que adora viajar para os lugares mais remotos do mundo, mas está impedido de sair de casa devido a sua perna em recuperação, assim Jeff passa os dias observando de binóculos as ações dos seus vizinhos pela janela de seu apartamento. Lisa, noiva de Jeff é uma estilista famosa que sonha em se casar e ter com ele uma vida feliz, para isso ela faz de tudo para agradá-lo e também para provar que os estilos de vida aventureiro dele e luxuoso dela são compatíveis. Quando Jeff afirma ter testemunhado um assassinato, Lisa participa das investigações do noivo, mesmo sob uma enxurrada de críticas dos amigos descrentes de Jeff, ela não discorda do noivo em nenhum só momento (isso me impressionou bastante na personagem). O mais interessante do filme é notar que sempre quando Lisa está dentro da casa com Jeff, ele está com seus olhos voltados para o que se passa na janela, ele não valoriza a companhia da noiva ao seu lado e tem resistência em acreditar que seus estilos de vida serão satisfatórios aos dois no casamento. Lisa percebe que seu relacionamento pode estar por um fio, mas o ponto de virada da relação é quando ela resolve invadir a casa do suposto assassino e é agredida pelo mesmo, Jeff assiste a agressão sem pode fazer nada e se desespera, depois desse episódio dramático  ele redescobre a admiração e o amor pela noiva. Parece que Jeff não enxergava as qualidades da noiva do lugar onde ela estava, quando ela desenvolve sua ação no "palco" em que Jeff presta atenção o valor da noiva para ele aumenta. A cena final é inesperadamente engraçada, Lisa também parece ter mudado e se tornado uma mulher com os mesmos interesses de leitura e vida do noivo, mas a verdade é que tudo é estratégia da moça casadoira. Achei Lisa uma personagem admirável, ingênua, mas também esperta, o que mais me comove na estilista é que ela continua acreditando na sua relação com Jeff, mesmo diante daquele noivo reticente.

E finalmente em O último metrô, temos a opressão da Segunda Guerra se sobrepondo a guerra das relações pessoais. A Guerra faz surgir um triângulo amoroso entre Marion, Lucas (o marido) e Bernard (o amante). Onde nasceria a guerra entre os dois homens pela mulher amada, ou guerra entre o marido e a esposa atraída por outro homem, surge solidariedade e compreensão entre os três personagens. O motivo para a tolerância e não-disputa neste caso é que, além de serem apaixonados por Marion, Lucas e Bernard dependem dela para sobreviver na guerra, o amante precisa do emprego de ator e o marido do esconderijo, por ser judeu, uma briga entre os três nessa situação os colocaria como alvos dos nazistas. Nesse sentido Marion é dotada de poder masculino, visto que ela é a provedora de ambos, protegida por seu prestígio de artista, administrando o teatro do marido e ainda dirigindo a peça (com ajuda deste), ela livra a si própria e seus amados dos perseguidores da Guerra. A cena mais impressionante é do marido, Lucas, que percebendo os sentimentos de sua mulher pelo jovem ator, o interpõe e pergunta se ele também está apaixonado por Marion, Bernard que parece nem ter se dado conta do sentimentos de Marion ou dos seus, hesita em responder, mas a cena seguinte já é a resposta, Marion e Bernard se beijando e finalmente consumando a desconfiança de Lucas. O que mais me deixou surpresa no filme, foi a sensibilidade de Lucas ao perceber os sentimentos de Marion e Bernard, longe de ser a figura do marido traído que é o último a saber, o diretor de teatro, percebe as relações e sentimentos a sua volta. A cena final é com os três de mãos dadas em clima de encerramento e paz, dando a entender que estavam convivendo. Nos três filmes anteriores o homem é que é o ser amado, neste filme esse é um ponto diferente das demais histórias, nas quais às mulheres cabe apenas a função de amar e perdoar, Aurora perdoa a tentativa de assassinato do marido, Maria Alice perdoa infidelidade do namorado e Lisa perdoa o desinteresse do noivo.

Pois bem, quem conseguiu explicar melhor em meio às discussões o que seria o amor em fuga, foi o Edu, e o que eu entendi do discurso dele foi o seguinte: espera-se que o amor seja imutável e constante, como um mar sem ondas, afinal o amor é para ser algo que dá conforto ao indivíduo, saber-se amado pelo ser amado faz bem ao ego e ao coração, como disse Guimarães Rosa “amor é um descanso na loucura”. Mas o que percebemos pelos filmes é que as relações amorosas têm altos e baixos, às vezes chegando aos extremos do alto e do baixo. Por isso, o amor está em fuga, conseguir amor é uma perseguição do ideal que se espera estático, mas a vida é dinâmica, as pessoas e as situações mudam, e essas mudanças podem trazer limitações insuperáveis que nem todo amor e dedicação do mundo conseguem superar. 


*Peguei o título emprestado do filme Do amor e outras drogas (2011) de Edward Zwick, muito bom aliás, recomendo.
** Imagem retirada daqui: http://www.lpm-blog.com.br/?p=8606

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Mais uma ótima história de amor em fuga...

[2º post bem atrasado, pardon, mes amis] Se fosse um filme, esse conto poderia ser a quinta obra do módulo O amor em fuga. Mas nesta história, ao contrário das outras que vimos nos encontros, o amor é fugitivo bem-sucedido...Quis compartilhar este conto, porque é o meu favorito do Mário e tem tudo a ver com tema discutido deste módulo. Portanto, fica a leitura para quem gosta ou aguenta as histórias de amor mal resolvidas e desventuras amorosas.

Vestida de preto de Mário de Andrade¹


Tanto andam agora preocupados em definir o conto que não sei bem se o que vou contar é conto ou não, sei que é verdade. Minha impressão é que tenho amado sempre. Depois do amor grande por mim que brotou aos três anos e durou até os cinco mais ou menos, logo o meu amor se dirigiu para uma espécie de prima longínqua que freqüentava a nossa casa. Como se vê, jamais sofri do complexo de Édipo, graças a Deus. Toda a minha vida, mamãe e eu fomos muito bons amigos, sem nada de amores perigosos.

Maria foi o meu primeiro amor. Não havia nada entre nós, está claro, ela como eu nos seus cinco anos apenas, mas não sei que divina melancolia nos tomava, se acaso nos achávamos juntos e sozinhos. A voz baixava de tom, e principalmente as palavras é que se tornaram mais raras, muito simples. Uma ternura imensa, firme e reconhecida, não exigindo nenhum gesto. Aquilo aliás durava pouco, porque logo a criançada chegava. Mas tínhamos então uma raiva impensada dos manos e dos primos, sempre exteriorizada em palavras ou modos de irritação. Amor apenas sensível naquele instinto de estarmos sós.

E só mais tarde, já pelos nove ou dez anos, é que lhe dei nosso único beijo, foi maravilhoso. Se a criançada estava toda junta naquela casa sem jardim da Tia Velha, era fatal brincarmos de família, porque assim Tia Velha evitava correrias e estragos. Brinquedo aliás que nos interessava muito, apesar da idade já avançada para ele. Mas é que na casa de Tia Velha tinha muitos quartos, de forma que casávamos rápido, só de boca, sem nenhum daqueles cerimoniais de mentira que dantes nos interessavam tanto, e cada par fugia logo, indo viver no seu quarto. Os melhores interesses infantis do brinquedo, fazer comidinha, amamentar bonecas, pagar visitas, isso nós deixávamos com generosidade apressada para os menores. Íamos para os nossos quartos e ficávamos vivendo lá. O que os outros faziam, não sei. Eu, isto é, eu com Maria, não fazíamos nada. Eu adorava principalmente era ficar assim sozinho com ela, sabendo várias safadezas já mas sem tentar nenhuma. Havia, não havia não, mas sempre como que havia um perigo iminente que ajuntava o seu crime à intimidade daquela solidão. Era suavíssimo e assustador.

Maria fez uns gestos, disse algumas palavras. Era o aniversário de alguém, não lembro mais, o quarto em que estávamos fora convertido em dispensa, cômodas e armários cheios de pratos de doces para o chá que vinha logo. Mas quem se lembrasse de tocar naqueles doces, no geral secos, fáceis de disfarçar qualquer roubo! estávamos longe disso. O que nos deliciava era mesmo a grave solidão.

Nisto os olhos de Maria caíram sobre o travesseiro sem fronha que estava sobre uma cesta de roupa suja a um canto. E a minha esposa teve uma invenção que eu também estava longe de não ter. Desde a entrada no quarto eu concentrara todos os meus instintos na existência daquele travesseiro, o travesseiro cresceu como um danado dentro de mim e virou crime. Crime não, "pecado" que é como se dizia naqueles tempos cristãos... E por causa disso eu conseguira não pensar até ali, no travesseiro.

— Já é tarde, vamos dormir — Maria falou.

Fiquei estarrecido, olhando com uns fabulosos olhos de imploração para o travesseiro quentinho, mas quem disse travesseiro ter piedade de mim. Maria, essa estava simples demais para me olhar e surpreender os efeitos do convite: olhou em torno e afinal, vasculhando na cesta de roupa suja, tirou de lá uma toalha de banho muito quentinha que estendeu sobre o assoalho. Pôs o travesseiro no lugar da cabeceira, cerrou as venezianas da janela sobre a tarde, e depois deitou, arranjando o vestido pra não amassar.

Mas eu é que nunca havia de pôr a cabeça naquele restico de travesseiro que ela deixou pra mim, me dando as costas. Restico sim, apesar do travesseiro ser grande. Mas imaginem numa cabeleira explodindo, os famosos cabelos assustados de Maria, citação obrigatória e orgulho de família. Tia Velha, muito ciumenta por causa duma neta preferida que ela imaginava deusa, era a única a pôr defeito nos cabelos de Maria.

— Você não vem dormir também? — ela perguntou com fragor, interrompendo o meu silêncio trágico.

— Já vou — que eu disse — estou conferindo a conta do armazém.

Fui me aproximando incomparavelmente sem vontade, sentei no chão tomando cuidado em sequer tocar no vestido, puxa! também o vestido dela estava completamente assustado, que dificuldade! Pus a cara no travesseiro sem a menor intenção de.

Mas os cabelos de Maria, assim era pior, tocavam de leve no meu nariz, eu podia espirrar, marido não espirra. Senti, pressenti que espirrar seria muito ridículo, havia de ser um espirrão enorme, os outros escutavam lá da sala-de-visita longínqua, e daí é que o nosso segredo se desvendava todinho.

Fui afundando o rosto naquela cabeleira e veio a noite, senão os cabelos (mas juro que eram cabelos macios) me machucavam os olhos. Depois que não vi nada, ficou fácil continuar enterrando a cara, a cara toda, a alma, a vida, naqueles cabelos, que maravilha! até que o meu nariz tocou num pescocinho roliço. Então fui empurrando os meus lábios, tinha uns bonitos lábios grossos, nem eram lábios, era beiço, minha boca foi ficando encanudada até que encontrou o pescocinho roliço. Será que ela dorme de verdade?... Me ajeitei muito sem-cerimônia, mulherzinha! e então beijei. Quem falou que este mundo é ruim! só recordar... Beijei Maria, rapazes! eu nem sabia beijar, está claro, só beijava mamães, boca fazendo bulha, contato sem nenhum calor sensual.

Maria, só um leve entregar-se, uma levíssima inclinação pra trás me fez sentir que Maria estava comigo em nosso amor. Nada mais houve. Não, nada mais houve. Durasse aquilo uma noite grande, nada mais haveria porque é engraçado como a perfeição fixa a gente. O beijo me deixara completamente puro, sem minhas curiosidades nem desejos de mais nada, adeus pecado e adeus escuridão! Se fizera em meu cérebro uma enorme luz branca, meu ombro bem que doía no chão, mas a luz era violentamente branca, proibindo pensar, imaginar, agir. Beijando.

Tia Velha, nunca eu gostei de Tia Velha, abriu a porta com um espanto barulhento. Percebi muito bem, pelos olhos dela, que o que estávamos fazendo era completamente feio.

— Levantem!... Vou contar pra sua mãe, Juca!

Mas eu, levantando com a lealdade mais cínica deste mundo!

— Tia Velha me dá um doce?

Tia Velha – eu sempre detestei Tia Velha, o tipo da bondade Berlitz, injusta, sem método — pois Tia Velha teve a malvadeza de escorrer por mim todo um olhar que só alguns anos mais tarde pude compreender inteiramente. Naquele instante, eu estava só pensando em disfarçar, fingindo uma inocência que poucos segundos antes era real.

— Vamos! saiam do quarto!

Fomos saindo muito mudos, numa bruta vergonha, acompanhados de Tia Velha e os pratos que ela viera buscar para a mesa de chá.

O estranhíssimo é que principiou, nesse acordar à força provocado por Tia Velha, uma indiferença inexplicável de Maria por mim. Mais que indiferença, frieza viva, quase antipatia. Nesse mesmo chá inda achou jeito de me maltratar diante de todos, fiquei zonzo.

Dez, treze, quatorze anos... Quinze anos. Foi então o insulto que julguei definitivo. Eu estava fazendo um ginásio sem gosto, muito arrastado, cheio de revoltas íntimas, detestava estudar. Só no desenho e nas composições de português tirava as melhores notas. Vivia nisso: dez nestas matérias, um, zero em todas as outras. E todos os anos era aquela já esperada fatalidade: uma, duas bombas (principalmente em matemáticas) que eu tomava apenas o cuidado de apagar nos exames de segunda época.

Gostar, eu continuava gostando muito de Maria, cada vez mais, conscientemente agora. Mas tinha uma quase certeza que ela não podia gostar de mim, quem gostava de mim!... Minha mãe... Sim, mamãe gostava de mim, mas naquele tempo eu chegava a imaginar que era só por obrigação. Papai, esse foi sempre insuportável, incapaz de uma carícia. Como incapaz de uma repreensão também. Nem mesmo comigo, a tara da família, ele jamais ralhou. Mas isto é caso pra outro dia. O certo é que, decidido em minha desesperada revolta contra o mundo que me rodeava, sentindo um orgulho de mim que jamais buscava esclarecer, tão absurdo o pressentia, o certo é que eu já principiava me aceitando por um caso perdido, que não adiantava melhorar.

Esse ano até fora uma bomba só. Eu entrava da aula do professor particular, quando enxerguei a saparia na varanda e Maria entre os demais. Passei bastante encabulado, todos em férias, e os livros que eu trazia na mão me denunciando, lembrando a bomba, me achincalhando em minha imperfeição de caso perdido. Esbocei um gesto falsamente alegre de bom-dia, e fui no escritório pegado, esconder os livros na escrivaninha de meu pai. Ia já voltar para o meio de todos, mas Matilde, a peste, a implicante, a deusa estúpida que Tia Velha perdia com suas preferências:

— Passou seu namorado, Maria.

— Não caso com bombeado — ela respondeu imediato, numa voz tão feia, mas tão feia, que parei estarrecido. Era a decisão final, não tinha dúvida nenhuma. Maria não gostava mais de mim. Bobo de assim parado, sem fazer um gesto, mal podendo respirar.

Aliás um caso recente vinha se ajuntar ao insulto pra decidir de minha sorte. Nós seríamos até pobretões, comparando com a família de Maria, gente que até viajava na Europa. Pois pouco antes, os pais tinham feito um papel bem indecente, se opondo ao casamento duma filha com um rapaz diz-que pobre mas ótimo. Houvera um rompimento de amizade, mal-estar na parentagem toda, o caso virara escândalo mastigado e remastigado nos comentários de hora de jantar. Tudo por causa do dinheiro.

Se eu insistisse em gostar de Maria, casar não casava mesmo, que a família dela não havia de me querer. Me passou pela cabeça comprar um bilhete de loteria. "Não caso com bombeado"... Fui abraçando os livros de mansinho, acariciei-os junto ao rosto, pousei a minha boca numa capa, suja de pó suado, retirei a boca sem desgosto. Naquele instante eu não sabia, hoje sei: era o segundo beijo que eu dava em Maria, último beijo, beijo de despedida, que o cheiro desagradável do papelão confirmou. Estava tudo acabado entre nós dois.

Não tive mais coragem pra voltar à varanda e conversar com... os outros. Estava com uma raiva desprezadora de todos, principalmente de Matilde. Não, me parecia que já não tinha raiva de ninguém, não valia a pena, nem de Matilde, o insulto partira dela, fora por causa dela, mas eu não tinha raiva dela não, só tristeza, só vazio, não sei... creio que uma vontade de ajoelhar. Ajoelhar sem mais nada, ajoelhar ali junto da escrivaninha e ficar assim, ajoelhar. Afinal das contas eu era um perdido mesmo, Maria tinha razão, tinha razão, tinha razão, que tristeza!

Foi o fim? Agora é que vem o mais esquisito de tudo, ajuntando anos pulados. Acho que até não consigo contar bem claro tudo o que sucedeu. Vamos por ordem: Pus tal firmeza em não amar Maria mais, que nem meus pensamentos me traíram. De resto a mocidade raiava e eu tinha tudo a aprender. Foi espantoso o que se passou em mim. Sem abandonar o meu jeito de "perdido", o cultivando mesmo, ginásio acabado, eu principiara gostando de estudar. Me batera, súbito, aquela vontade irritada de saber, me tornara estudiosíssimo. Era mesmo uma impaciência raivosa, que me fazia devorar bibliotecas, sem nenhuma orientação. Mas brilhava, fazia conferências empoladas em sociedadinhas de rapazes, tinha idéias que assustavam todo o mundo. E todos principiavam maldando que eu era muito inteligente mas perigoso.

Maria, por seu lado, parecia uma doida. Namorava com Deus e todo o mundo, aos vinte anos fica noiva de um rapaz bastante rico, noivado que durou três meses e se desfez de repente, pra dias depois ela ficar noiva de outro, um diplomata riquíssimo, casar em duas semanas com alegria desmedida, rindo muito no altar e partir em busca duma embaixada européia com o secretário chique seu marido.

Às vezes meio tonto com estes acontecimentos fortes, acompanhados meio de longe, eu me recordava do passado, mas era só pra sorrir da nossa infantilidade e devorar numa tarde um livro incompreensível de filosofia. De mais a mais, havia Rose pra de-noite, e uma linda namoradinha oficial, a Violeta. Meus amigos me chamavam de "jardineiro", e eu punha na coincidência daqueles duas flores uma força de destinação fatalizada. Tamanha mesmo que topando numa livraria com The Gardener de Tagore, comprei o livro e comecei estudando o inglês com loucura. Mário de Andrade conta num dos seus livros que estudou o alemão por causa dum emboaba tordilha... eu também: meu inglês nasceu duma Violeta e duma Rose.

Não, nasceu de Maria. Foi quando uns cinco anos depois, Maria estava pra voltar pela primeira vez ao Brasil, a mãe dela, queixosa de tamanha ausência, conversando com mamãe na minha frente, arrancou naquele seu jeito de gorda desabrida:

— Pois é, Maria gostou tanto de você, você não quis!... e agora ela vive longe de nós.

Pela terceira vez fiquei estarrecido neste conto. Percebi tudo num tiro de canhão. Percebi ela doidejando, noivando com um, casando com outro, se atordoando com dinheiro e brilho. Percebi que eu fora uma besta, sim agora que principiava sendo alguém, estudando por mim fora dos ginásios, vibrando em versos que muita gente já considerava. E percebi horrorizado, que Rose! nem Violeta, nem nada! era Maria que eu amava como louco! Maria é que amara sempre, como louco: ôh como eu vinha sofrendo a vida inteira, desgraçadíssimo, aprendendo a vencer só de raiva, me impondo ao mundo por despique, me superiorizando em mim só por vingança de desesperado. Como é que eu pudera me imaginar feliz, pior: ser feliz, sofrendo daquele jeito! Eu? eu não! era Maria, era exclusivamente Maria toda aquela superioridade que estava aparecendo em mim... E tudo aquilo era uma desgraça muito cachorra mesma. Pois não andavam falando muito de Maria? Contavam que pintava o sete, ficara célebre com as extravagâncias e aventuras. Estivera pouco antes às portas do divórcio, com um caso escandaloso por demais, com um pintor de nomeada que só pintava efeitos de luz. Maria falada, Maria bêbeda, Maria passada de mão em mão, Maria pintada nua...

Se dera como que uma transposição de destinos... E tive um pensamento que ao menos me salvou no instante: se o que tinha de útil agora em mim era Maria, se ela estava se transformando no Juca imperfeitíssimo que eu fora, se eu era apenas uma projeção dela, como ela agora apenas uma projeção de mim, se nos trocáramos por um estúpido engano de amor: mas ao menos que eu ficasse bem ruim, mas bem ruim mesmo outra vez pra me igualar a ela de novo. Foi a razão da briga com Violeta, impiedosa, e a farra dessa noite – bebedeira tamanha que acabei ficando desacordado, numa série de vertigens, com médico, escândalo, e choro largo de mamãe com minha irmã.

Bom, tinha que visitar Maria, está claro, éramos "gente grande" agora. Quando soube que ela devia ir a um banquete, pensei comigo: "ótimo, vou hoje logo depois de jantar, não encontro ela e deixo o cartão". Mas fui cedo demais. Cheguei na casa dos pais dela, seriam nove horas, todos aqueles requififes de gente ricaça, criado que leva cartão numa salva de prata etc. Os da casa estavam ainda jantando. Me introduziram na saletinha da esquerda, uma espécie de luís-quinze muito sem-vergonha, dourado por inteiro, dando pro hol central. Que fizesse o favor de esperar, já vinham.

Contemplando a gravura cor-de-rosa, senti de supetão que tinha mais alguém na saleta, virei. Maria estava na porta, olhando pra mim, se rindo, toda vestida de preto. Olhem: eu sei que a gente exagera em amor, não insisto. Mas se eu já tive a sensação da vontade de Deus, foi ver Maria assim, toda de preto vestida, fantasticamente mulher. Meu corpo soluçou todinho e tornei a ficar estarrecido.

— Ao menos diga boa-noite, Juca...

"Boa-noite, Maria, eu vou-me embora"... meu desejo era fugir, era ficar e ela ficar mas, sim, sem que nos tocássemos sequer. Eu sei, eu juro que sei que ela estava se entregando a mim, me prometendo tudo, me cedendo tudo quanto eu queria, naquele se deixar olhar, sorrindo leve, mãos unidas caindo na frente do corpo, toda vestida de preto. Um segundo, me passou na visão devorá-la numa hora estilhaçada de quarto de hotel, foi horrível. Porém, não havia dúvida: Maria despertava em mim os instintos da perfeição. Balbuciei afinal um boa-noite muito indiferente, e as vozes amontoadas vinham do hol, dos outros que chegavam.

Foi este o primeiro dos quatro amores eternos que fazem de minha vida uma grave condensação interior. Sou falsamente um solitário. Quatro amores me acompanham, cuidam de mim, vêm conversar comigo. Nunca mais vi Maria, que ficou pelas Europas, divorciada afinal, hoje dizem que vivendo com um austríaco interessado em feiras internacionais. Um aventureiro qualquer. Mas dentro de mim, Maria... bom: acho que vou falar banalidade.

¹ Fonte do texto: http://www.releituras.com/marioandrade_vestida.asp

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Amor é bicho instruído

[post bem atrasado, desculpem] O tema do amor em fuga me deixou inspirada para escrever no blog, depois de um longo tempo sem pegar no teclado. Esse ainda não é o texto de comentário dos filmes, que ainda estou terminando, mas gostaria de compartilhar o poema que mais gosto sobre o amor.  

Cena de "Sonho de uma noite de verão" (1999) de Michael Hoffman¹

O Amor Bate na Aorta (Carlos Drummond de Andrade)

Cantiga de amor sem eira
nem beira,
vira o mundo de cabeça
para baixo,
suspende a saia das mulheres,
tira os óculos dos homens,
o amor, seja como for,
é o amor.

Meu bem, não chores,
hoje tem filme de Carlito.

O amor bate na porta
o amor bate na aorta,
fui abrir e me constipei.
Cardíaco e melancólico,
o amor ronca na horta
entre pés de laranjeira
entre uvas meio verdes
e desejos já maduros.

Entre uvas meio verdes,
meu amor, não te atormentes.
Certos ácidos adoçam
a boca murcha dos velhos
e quando os dentes não mordem
e quando os braços não prendem
o amor faz uma cócega
o amor desenha uma curva
propõe uma geometria.

Amor é bicho instruído.
Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que corre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem,
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.

Daqui estou vendo o amor
irritado, desapontado,
mas também vejo outras coisas:
vejo beijos que se beijam
ouço mãos que se conversam
e que viajam sem mapa.
Vejo muitas outras coisas

que não ouso compreender...

Fonte: ANDRADE, Carlos Drummond de. Brejo das almas. Rio de Janeiro: Record, 2001.


¹ Fonte da imagem: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-20490/fotos/detalhe/?cmediafile=19902134

domingo, 17 de agosto de 2014

Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará?









Queremos realmente conhecer a verdade ou buscamos somente uma verdade que nos seja suficiente, que nos alivie, nos console?

Há pessoas que preferem permanecer com suas certezas sem qualquer motivação para questioná-las?

É cômodo não saber, não ter que pensar, não problematizar?

Há uma relação entre verdade, felicidade e angústia?
Conhecer, buscar o esclarecimento, sair dos dogmas é direito de todos?
É factível a todos conhecer a verdade?
A verdade é perturbadora?
A filosofia é para todos os espíritos?
A verdade liberta?

Há uma máxima popular que diz que ninguém é dono da verdade, ou ainda, que tudo é relativo, que a verdade é relativa. Ela se adequaria a situações e ao gosto de cada um; percebe-se essa relatividade nas religiões, por exemplo, onde cada uma tem a sua verdade, renegando-se umas às outras, pondo-se como absolutas, apesar de o homem sonhar que ao menos uma delas, quando não várias, tenha as respostas para os absurdos e dúvidas da vida, mas a conotação de "mistérios" encontrada nas religiões demonstra, a quem se aventurar por uma delas, que terá de percorrer um longo e árduo caminho de busca para a verdade prometida.



As ciências assumem que muitas verdades são contextuais, conjeturais e passageiras até que se proponha e se imponha uma verdade nova que suplante a anterior e para isso teria que obedecer o método científico, "dogma" da ciência, a qual também é passível de renovação, no que se refere ao cotidiano e ao senso comum, a verdade chega a um nível de particularidade comunitárias, tribais, familiar e pessoal, que passa a ser um queijo suíço. 

Quatro tragédias sobre a verdade

A verdade liberta?

É uma questão que perpassa por esses filmes em cada protagonista. Sócrates apregoava que uma "vida não examinada não vale a pena ser vivida" (2), admitamos que haveria condições para estabelecermos uma vida refletida, a filosofia é uma bom caminho para isso, mas essas condições não são do conhecimento da grande maioria que passa pela vida à margem da reflexão, muitos por escolha preferem passar ao largo desse verdadeiro combate, pois essa conduta exige do homem uma atitude de discussão e embate constante com os padrões de vida postos socialmente, é um combate duro e sofrido, o não combate é mais cômodo, menos extenuante para muitos. A recusa a esse combate é ilustrada em Crimes e pecados, quando uma cética existencialista, numa discussão familiar sobre religião, arranca do tio religioso a informação que a verdade não importa para ele, o que está na bíblia é o que importa.

Livres?

Vivemos em um estado de penumbra, em uma caverna sem a identificá-la. A remota possibilidade de descobrir ainda poderá gerar uma reação negativa a esta descoberta como ocorre no Mito da Caverna de Platão, metáfora da condição do ser envolvido na ignorância do mundo à sua volta, da realidade verdadeira. Demonstra o quanto o caminho seria penoso a quem se propõe buscar a verdade. O herói quando retorna à caverna para comunicar aos outros prisioneiros a verdade ele é espancado e morto.

O conhecimento, a verdade e sua obtenção nortearam os quatro filmes do módulo Mito e Tragédia do livro História da Filosofia em 40 filmes(1) em nossas sessões caseiras. Medéia, OldBoy, Ladrões de bicicleta e Crimes e pecados apresentam o herói hora em fuga, hora em busca de algo que o mesmo às vezes não sabe exatamente o que é (Medéia, Old Boy), ou busca algo pensando ser sua salvação (Medéia e Ladrões de bicicleta) e por último um herói deslocado procurando entender o que é a felicidade com seu guru filósofo em paralelo a um assassino atormentado pelas consequências de seu ato (Crimes e Pecados).

A Medéia, de Passolini, tangencia por dois mundos do conhecimento: o mítico, na figura de Medéia e o racional na figura de Jasão que se confrontam, nunca dialogam, sendo que o mundo da lógica e da razão estaria se impondo ao velho mundo mítico. Depois entramos na tragédia moderna Oldboy, vimos a trajetória sangrenta e vingativa do personagem principal para descobrir por que passou 15 anos preso num quarto de hotel, quando o descobre percebe que preferia não saber.

Em Ladrões de bicicleta, filme de leitura marxista da realidade, vimos o herói na busca por uma bicicleta que lhe garantisse o emprego, um herói sem a mínima noção do absurdo da sua situação como peça de uma engrenagem de moer gente. Dentro do sistema de exploração da sua força de trabalho ele só cumpria seu papel tentando sobreviver, mas a integração no sistema não envolve necessariamente estar empregado, o desemprego é parte do processo de exploração do sistema capitalista.

Encerramos com Crimes e pecados. Aqui temos um herói que não se enquadra no padrão do homem ideal e em crise no casamento dirigindo um documentário sobre a felicidade com um filósofo, seu guru, sobrevivente de um campo de concentração, este teria respostas para sua angústias e buscas, mas ao final estas respostas se revelam inconclusivas

Na história paralela do longa temos um assassino não descoberto pela polícia se deparando com a questão do que seja realmente um criminoso, a sua culpa estaria vinculada com a certeza da punição social e mesmo religiosa, não havendo ele deixa de ser um criminoso, ao menos para ele mesmo. A felicidade é relativa à consciência de valores que carregamos ou com o que nos importamos para estar no mundo e ser aceito por ele, ainda que venhamos a mentir para ele e para nós mesmo. Ao herói frustado por não se enquadrar aos padrões sociais só lhe resta a angústia dos seus questionamentos. 


O filme Oldboy tem fortes traços do mito de Édipo, herói grego desgraçado pela verdade quando descobre ter matado o pai e esposado a mãe. O herói coreano tem uma segunda chance para ser feliz se escolher permanecer na ignorância e assim escolhe não saber. Em Ladrões de bicicleta o herói permanece o tempo todo vítima do sistema e o reproduz em micro escala ao procurar sua sobrevivência. Não percebe que a união com seus pares talvez lhe oferecesse a oportunidade de tentar mudar a sua exploração, não se sente explorado e interage com o seu mundo injusto, achando natural a sua condição, mesmo com a ajuda mística buscada por sua esposa obtém apenas uma resposta consolativa para continuar integrado na exploração de sua força de trabalho. 


No existencialismo a tão decantada liberdade se torna um fastio: "o homem está condenado a liberdade", afirma Sartre, apunhalando a visão que se tem em geral da liberdade como uma dádiva, que por sinal é a mesma sobre a busca do conhecimento e da sabedoria. 

Se analisarmos a figura estereotípica do filósofo angustiado chegaremos à conclusão de que ela não foge muito da realidade e mesmo aqueles que escolhem o contentamento do não questionamento das condições da sua caverna, não buscando a possível existência de outras possibilidades de estar no mundo, acaba ainda assim por usufruir da sua liberdade ao fazer a escolha por ignorar.
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1) COSTA, Alexandre; PESSOA, Patrick. História da filosofia em 40 filmes. Rio de Janeiro: Nau, 2013. Mais detalhes aqui e aqui.

2) GRAYLING, A.C.. O significado das coisas: aplicação da filosofia à vida. Lisboa: Gradiva, 2002. p. 11-12. Mais aqui.

3) Mito da CavernaAqui uma análise.

sábado, 26 de abril de 2014

Medéia e Jasão: a esquizofrenia do logos

Fugindo da tese mais comum da vingança passional da Medéia de Eurípedes,  em "Medéa" de Pasolini temos dois mundos antagônicos representados. Primeiro Medéia a feiticeira desenraizada de sua terra e profundamente vinculada a um mundo que cultiva o misticismo, o divino, o mágico, em seguida Jasão,  o homem que aos poucos se distancia do mítico, se torna urbano, prático, cético, que não dialoga mais com o aquele mundo que estaria morrendo com o surgimento da filosofia,  representando o racionalismo, o logos em ascensão na Grécia antiga.

Hoje sabemos que o centro do universo não é a terra, o que é gravidade, o que são micróbios, o homem já foi a lua, temos bebês de proveta fabricados em escala industrial, discute-se a possibilidade em criar seres humanos com a manipulação genética, produzimos alimentos em abundância, apesar da fome ainda reinar; dominamos o átomo. Na virada do século 18 para o 19 acreditava-se que o homem abandonaria a religião, tamanha era a crença na ciência.

2500 anos depois do nascimento da filosofia ocidental o homem ainda vive atrelado ao pensamento mítico, o criacionismo explica para muitos o surgimento do universo e da vida e não o big bang e o evolucionismo. Se você acredita em cartas de tarot e horóscopo, não passa debaixo de escada, tem mendo de gato preto, faz sinal da cruz em frente da igreja,  desvira o chinelo para salvar sua mãe, você não está distante deste novo/velho  universo mítico.

O ser humano é a contradição em estado bruto e a levou para a filosofia, sua cria dita racional. Suas crenças são excludentes umas com as outras e sua filosofia ou  filosofias também.

A filosofia é vista por muitos como mera masturbação intelectual, movimentos teocráticos existem no mundo oriental e ocidental, a busca de respostas para o sentido da vida não é hegemonia das academias e mesmo os acadêmicos de várias linhas de pensamento tentam juntar misticismo e racionalismo. O homem ocidental talvez tenha se distanciado da crença simples e pura no misticismo, mas com a ciência e a filosofia criou uma nova corrente mais complexa de confusão mental,
algo como aquele poema "Ismália" de Alphonsus de Guimaraens:

Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...

E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Rashomon nosso de cada dia






Em nosso primeiro encontro do CineFilô assistimos ao filme Rashomon de Akira Kurosawa, baseado nos contos "Dentro do bosque" e "Rashomon" de  R. Akutagawa.

A base do filme são as várias versões dos personagens sobre um mesmo acontecimento, o estupro de uma mulher e conseqüente morte do seu marido durante uma viagem.

Percebemos que os personagens se movem pelos seus interesses no relato dos acontecimentos, cada um conta sua versão de maneira que, apesar de estar em uma situação indigna, sua ação diante dela acaba tendo um mínimo de atitude digna. A viúva tenta manter sua dignidade de esposa desonrada relatando que tentou o suicídio após o ato consumado; o marido morto, intercedido por um médium, afirma que cometeu suicídio, pois este era o único caminho para sua dor e até mesmo o estuprador e assassino assume uma postura minimamente digna nos seus atos, justificando que foi por amor e mesmo não tendo a intenção de matar seu oponente, este morreu num duelo limpo.

Entre as várias discussões ocorridas no encontro, a mais acalorada foi uma comparação do filme com as notícias da imprensa sobre os black blocs e as passeatas. Moisés apontou pertinentemente que existem versões para tudo e perguntou sobre as razões da grande imprensa para as suas versões. Lembramos do episódio filmado de um policial que apanhou de uma série de manifestantes ou vândalos, como afirmam os jornalistas, durante a passeata do dia 25 de outubro no Parque D. Pedro. O mesmo incidente gerou comentários e versões nas redes sociais inversamente contrários um do outro. O vídeo na Mídia Ninja junto com a legenda parecia um ato de resistência, e o mesmo na G1, daria para se apiedar do policial. Diante dos mesmos episódios, assim como os personagens do filme, cada um verá e relatará os eventos imerso de interesse próprio, aspirações, espírito de corpo e, completo aqui, de espírito de porco (por que não?) se assim for conveniente. Quais então seriam os interesses da grande imprensa? A quem ela representa? O que importa de fato aos donos dos grandes veículos de comunicação? As perguntas soam até pueril e a resposta óbvia. 

Existe uma verdade diante da quebradeira dos caixas eletrônicos dos bancos? há justificativas plausíveis para atual situação das manifestações? Há um inconformismo contra o que? A quem interessa e a quem não interessa esta reação, violenta ou não, ainda que pacífica? Foi lembrando, que muitos atos de violência também foi cometido pela polícia.

No final do filme Rashomon é aberto à possibilidade de haver uma verdade neutra, um lenhador arrependido de seus atos decide contar os fatos como possivelmente ocorreram. Será que na vida real é possível haver diante de várias versões, alguém ou uma forma de contar um fato sem interesses pessoais, de classe ou de outra ordem?

Nas reuniões da Confraria Filosófica ao fazermos observações e comentários, tentamos buscar uma coerência e imparcialidade em nossas análises? Um meio termo talvez ou nossa ótica é sempre a partir do nosso interesse na questão? É consciente ou inconsciente esse processo?

Partindo do pressuposto que é impossível uma neutralidade, é possível nos aliarmos ao lado certo ou ao bom caminho? Existe o lado certo?

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Confraria em módulo “cinefilô”

A Confraria Filosófica pretende tornar-se mais cinéfila nos próximos encontros, atendendo a aspirações já antigas do grupo.

Norteados pelo livro A história da filosofia em 40 filmes de Alexandre Costa e Patrick Pessoa, professores de Filosofia da Universidade Federal Fluminense, pensamos em repetir a experiência destes autores e seguir o roteiro proposto no livro.


Tema 1 – O que é filosofia?

Rashmon (Akira Kurosawa)
Persona (Ingmar Bergman)
Stalker (Andrei Tarkovski)
Blow up (Michelangelo Antonioni)

Tema 2 – Questões estéticas

Morte em Veneza (Luchino Visconti)
8 ½ (Frederico Fellini)
Cidade dos sonhos (David Lynch)
Asas do desejo (Wim Wenders)

Tema 3 – Mito e tragédia

Medeia (Pier Paolo Pasolini)
Oldboy (Chan-wook-Park)
Ladrões de bicicleta (Vittorio De Sica)
Crimes e pecados (Woody Allen)

Tema 4 – O existencialismo

A doce vida (Frederico Felini)
Estranhos no paraíso (Jum Jarmush)
Acossado (Jean-Luc Godard)
As coisas simples da vida (Edward Yang)

Tema 5 – O amor em fuga

Aurora (F.W. Murnau)
Janela indiscreta (Alfred Hitchcock)
Todas as mulheres do mundo (Domingos Oliveira)
O último metrô (François Truffaut)

Tema 6 – Morte e infinitude

Nosferatu, o vampiro da noite (Werner Herzog)
Hiroshima me amor (Alain Resnais)
Paris, Texas (Wim Wenders)
O sétimo selo (Ingmar Bergman)

Tema 7 – História e violência

Ricardo III (Al Pacino)
Machbeth (Roman Polanski)
Dogville (Lars von Trier)
Marcas da violência (David Cronenberg)

Tema 8 – O fascismo hoje

M, o vampiro de Düsseldorf (Fritz Lang)
Taxi Driver (Martin Scorcese)
Apocalypse now (Francis Ford Coppola)
Laranja mecânica (Stanley Kubrick)

Tema 9 – Cinema e revolução

O anjo exterminador (Luis Buñuel)
O encouraçado Potemkin (Sergei Eisentein)
O homem sem passado (Aki Kaurismaki)
Nós que nos amávamos tanto (Ettore Scola)

Tema 10 – O cinema nacional e a interpretação do Brasil

São Bernardo (Leon Hirsman)
Deus e o Diabo na terra do sol (Glauber Rocha)
Brás Cubas (Julio Bressane)
Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade)