"A morte de Ofélia", de John Everett Millais** (ou a pobre Aurora no final planejado pelo seu marido e a amante) |
Neste módulo intitulado O amor em fuga, assistimos a
quatro filmes: Aurora, Janela indiscreta, Todas as mulheres do mundo e O
último metrô. Segundo os autores do livro A
história da filosofia em 40 filmes, este módulo dedicado ao amor seria a
continuação do anterior sobre existencialismo, pois o que ainda daria
algum sentido a vida do homem existencialista,
seriam o amor e/ou a morte.
Nesses filmes o amor é o relacionamento humano
conjugal, passional e em fuga (no final do post vou tentar explicar o que entendi por
amor em fuga) e acontece entre o ser amante e o ser amado.
Para meu estarrecimento absoluto, logo no
primeiro filme, Aurora, o clima de desamor é funesto, pois
conta a história de um marido que planeja matar a esposa para poder viver com
sua amante na cidade. A cena mais comovente é a em que Aurora percebe a
tentativa de seu marido assassiná-la e implora pela vida (eu chorei
horrores). Porém, o destino de Aurora se transforma ao longo do filme
quase que magicamente, ela vai da condição de alvo da brutalidade do sórdido
marido, para a de mulher muito amada e desejada pelo mesmo esposo (o.O ?! -
essas reveses entre amor e ódio, vai entender). Mas o mais impressionante, para
mim pelo menos, é saber que: o que de fato muda o terrível destino de
Aurora, não são as atitudes da personagem, mas sim a percepção do marido sobre
a esposa. Segundo jornalista Sílvia Amélia "todo amor é
lembrança", depois que ele desiste do plano, sugerido por sua amante, de afogá-la (é minha gente A-F-O-G-Á-L-A
!!!) e, contra toda expectativa do final trágico, o personagem do marido
redescobre o amor por Aurora pelas lembranças, o casal vai para a cidade e
acaba fazendo um passeio recheado de locais por onde viveram momentos
românticos e também surgem novas aventuras. Se belo está nos olhos de quem vê,
então, o amor estaria na percepção de quem ama? Bastou o marido lançar um
segundo olhar para redescobrir em Aurora sua parceira ideal novamente? Para além do drama conjugal, gostei do filme porque mostra como era a relação marido-mulher no começo do século XX, a esposa quando indesejada era um fardo social e à mulher só restava rezar por dias melhores no casamento.
Em Todas as mulheres do mundo, Paulo
é o típico cafajeste cético no amor monogâmico, que acaba se apaixonando por
Maria Alice e passa a acreditar na vida conjugal burguesa e feliz. Tudo acaba
bem, é a história de mais um canalha convertido a pai de família. Os pontos
mais interessantes no filme são os questionamentos do próprio Paulo com seus
amigos acerca do amor e dos relacionamentos conjugais, segundo ele não seria
possível amar a uma só mulher em meio a todas as mulheres do mundo, a variedade,
as qualidades e defeitos em cada, tornaria impossível escolher uma única. Mas
também me impressiona a ambiguidade da relação de Paulo com as mulheres, marcado
pelo desejo e ao mesmo tempo pelo desprezo, deitado na praia cercado de várias
garotas conversando com ele, Paulo pensa “que mulherzinhas chatas”. O
personagem retrata um tipo masculino bem comum, que tem dúvidas sobre qual a
melhor vida amorosa e quais critérios usar para escolher a companheira ideal. No
final, ele diz a Maria Alice “você não é a melhor mulher do mundo, talvez não
seja a melhor mesmo, mas é você que eu amo e por isso eu te escolhi” ou algo
parecido com isso. Achei a Maria Alice uma personagem que
retrata como a maioria das mulheres é, feliz por ter o cafa amado redimido ao
seu lado. Nas discussões do confraria, apesar todas as opiniões contra, esse
filme mostra que o modelo burguês de relacionamento “funciona e dá certo”, nas
palavras do próprio Paulo.
Em Janela
indiscreta o relacionamento
amoroso divide a trama principal com uma suspeita de assassinato. É um suspense
e, justamente por isso, estranhei que um filme de Hitchcock tenha sido
escolhido para um módulo que fala de amor, mas no fim acho que a razão é a
mesma do Aurora, pois se
trata de uma história em que o olhar do ser amante muda sobre o ser amado. Jeff é um fotojornalista que
adora viajar para os lugares mais remotos do mundo, mas está impedido de sair
de casa devido a sua perna em recuperação, assim Jeff passa os dias observando de binóculos as ações dos seus vizinhos pela janela de seu apartamento.
Lisa, noiva de Jeff é uma estilista famosa que sonha em se casar e ter com ele
uma vida feliz, para isso ela faz de tudo para agradá-lo e também para provar
que os estilos de vida aventureiro dele e luxuoso dela são compatíveis. Quando
Jeff afirma ter testemunhado um assassinato, Lisa participa das investigações
do noivo, mesmo sob uma enxurrada de críticas dos amigos descrentes de Jeff, ela
não discorda do noivo em nenhum só momento (isso me impressionou bastante na
personagem). O mais interessante do filme é notar que sempre quando Lisa está
dentro da casa com Jeff, ele está com seus olhos voltados para o que se passa
na janela, ele não valoriza a companhia da noiva ao seu lado e tem resistência
em acreditar que seus estilos de vida serão satisfatórios aos dois no
casamento. Lisa percebe que seu relacionamento pode estar por um fio, mas o
ponto de virada da relação é quando ela resolve invadir a casa do suposto
assassino e é agredida pelo mesmo, Jeff assiste a agressão sem pode fazer nada
e se desespera, depois desse episódio dramático ele redescobre a admiração e o amor
pela noiva. Parece que Jeff não enxergava as qualidades da noiva do lugar onde ela estava, quando ela desenvolve sua ação no "palco" em que Jeff presta atenção o valor da noiva para ele aumenta. A cena final é inesperadamente engraçada, Lisa também parece ter mudado
e se tornado uma mulher com os mesmos interesses de leitura e vida do noivo,
mas a verdade é que tudo é estratégia da moça casadoira. Achei Lisa uma
personagem admirável, ingênua, mas também esperta, o que mais me comove na
estilista é que ela continua acreditando na sua relação com Jeff, mesmo diante
daquele noivo reticente.
E finalmente em O último metrô, temos a
opressão da Segunda Guerra se sobrepondo a guerra das relações pessoais. A
Guerra faz surgir um triângulo amoroso entre Marion, Lucas (o marido) e Bernard
(o amante). Onde nasceria a guerra entre os dois homens pela mulher amada, ou
guerra entre o marido e a esposa atraída por outro homem, surge solidariedade e
compreensão entre os três personagens. O motivo para a tolerância e não-disputa
neste caso é que, além de serem apaixonados por Marion, Lucas e Bernard
dependem dela para sobreviver na guerra, o amante precisa do emprego de ator e
o marido do esconderijo, por ser judeu, uma briga entre os três nessa situação
os colocaria como alvos dos nazistas. Nesse sentido Marion é dotada de poder masculino,
visto que ela é a provedora de ambos, protegida por seu prestígio de artista, administrando
o teatro do marido e ainda dirigindo a peça (com ajuda deste), ela livra a si
própria e seus amados dos perseguidores da Guerra. A cena mais impressionante é
do marido, Lucas, que percebendo os sentimentos de sua mulher pelo jovem ator, o
interpõe e pergunta se ele também está apaixonado por Marion, Bernard que parece
nem ter se dado conta do sentimentos de Marion ou dos seus, hesita em
responder, mas a cena seguinte já é a resposta, Marion e Bernard se beijando e
finalmente consumando a desconfiança de Lucas. O que mais me deixou surpresa no
filme, foi a sensibilidade de Lucas ao perceber os sentimentos de Marion e
Bernard, longe de ser a figura do marido traído que é o último a saber, o
diretor de teatro, percebe as relações e sentimentos a sua volta. A cena final é com os três de mãos dadas em clima de encerramento e paz, dando a
entender que estavam convivendo. Nos três filmes anteriores o homem é que é o
ser amado, neste filme esse é um ponto diferente das demais histórias, nas quais
às mulheres cabe apenas a função de amar e perdoar, Aurora perdoa a tentativa
de assassinato do marido, Maria Alice perdoa infidelidade do namorado e Lisa perdoa
o desinteresse do noivo.
Pois bem, quem conseguiu explicar melhor em meio
às discussões o que seria o amor em fuga, foi o Edu, e o que eu entendi do discurso
dele foi o seguinte: espera-se que o amor seja imutável e constante, como um
mar sem ondas, afinal o amor é para ser algo que dá conforto ao indivíduo,
saber-se amado pelo ser amado faz bem ao ego e ao coração, como disse Guimarães
Rosa “amor é um descanso na loucura”. Mas o que percebemos pelos filmes é que
as relações amorosas têm altos e baixos, às vezes chegando aos extremos do alto
e do baixo. Por isso, o amor está em fuga, conseguir amor é uma perseguição do
ideal que se espera estático, mas a vida é dinâmica, as pessoas e as situações
mudam, e essas mudanças podem trazer limitações insuperáveis que nem todo amor
e dedicação do mundo conseguem superar.
*Peguei o título emprestado do filme Do amor e outras drogas (2011) de Edward Zwick, muito bom
aliás, recomendo.
** Imagem retirada daqui: http://www.lpm-blog.com.br/?p=8606